Mato Grosso do Sul

DESDOBRAMENTOS DE UMA TRADIÇÃO PICTÓRICA: A ESTRUTURAÇÃO DOS CIRCUITOS ARTÍSTICOS EM MATO GROSSO DO SUL
Rafael Maldonado (1)

Em Mato Grosso do Sul, de forma muito peculiar, se desenhou uma matriz cultural interiorana influenciada pela paisagem, pela geografia entre fronteiras (Paraguai e Bolívia) e culturas tão marcantes, elementos presentes no percurso artístico orientado pela tradição de representação, através da pintura, dos valores visuais/culturais característicos da região.

Esse escopo cultural serve como ponto de partida para interpretações e leituras que busquem avaliar as manifestações e as heranças que foram aqui constituídas, pontuadas, nesses apontamentos, em quatro momentos determinantes da estruturação dos circuitos de produção artística; entendendo esses circuitos, estabelecidos a partir da produção e o surgimento de espaços institucionais para sua legitimação.

Sobre a perspectiva do início de formação da cultura sul-mato-grossense e os desafios gerados com a criação de Mato Grosso do Sul, em 1977, Figueiredo (1979) assinalou que a situação artística era de se lamentar, embora tenha detectado, nessa época, artistas e intelectuais locais como oportunidade importante para o florescimento cultural no novo Estado.

Nesse contexto, buscando entender como se deu esse desenvolvimento cultural, formulam-se duas importantes questões: é possível determinar a tradição pictórica como identidade da arte produzida em Mato Grosso do Sul, desde sua criação? Teria sedesenvolvido uma vocação regionalista perceptível na representação dos artistas?

Perguntas que tem base na influência da paisagem pantaneira e dos costumes da região retratados, na maioria das vezes, na produção em pintura, e no interesse de se desvencilhar da influência cultural do, então, Mato Grosso uno. Sobre essa questão regional, Menegazzo (2003) comenta que regionalismo é o local da cultura e a cultura local ao mesmo tempo, ou seja, não só se apresenta como objeto da cultura como também representa a cultura de um determinado objeto.

Assim, podemos afirmar que somos constituídos pela incorporação dos valores que nos envolvem. Entretanto, a influência social e o desenho cultural que identifica cada localidade não devem cercear os possíveis desdobramentos e reinterpretações a partir deles. Ao contrário, essas determinações podem ser incorporadas na reconfiguração das maneiras de se pensar o local, o peculiar e o próximo.

Avaliar a produção que representa o processo de modelação contínua da tradição e identidade plástica sul-mato-grossense, solicitou a reorganização histórica dos procedimentos artísticos que formaram o significativo patrimônio material legitimado na memória da cultura local.

Nesse contexto, mencionamos o conceito de tradição inventada, de Hobsbawn (2002), que estabelece que as tradições legitimam determinados valores na repetição de ritos que dão origem histórica a valores aceitos e reproduzidos, se opondo, muitas vezes, a costumes novos.

Por esse aspecto, com a criação do Estado de Mato Grosso do Sul, outra realidade cultural foi formulada adotando rotinas e convenções próprias, proporcionando a invenção de novos ritos e tradições.

Repensar historicamente o conteúdo artístico aqui desenvolvido para entender como os circuitos artísticos e culturais estruturaram essa tradição pictórica, e como se configuram atualmente, pensou-se a produção dividindo-a em quatro eixos temporais, observando sua relevância nos períodos definidos como: artistas da tradição, década de 1980, década de 1990 e artistas a partir do ano 2000.

Entender os aspectos da tradição na perspectiva daquilo que se formou antes e serviu de referência para a elaboração dos processos posteriores, permitiu a valoração do status histórico necessário para a legitimação da nossa memória cultural. E é nessa memória cultural que se estabeleceu o determinante para as questões apresentadas nos distintos circuitos da arte em Mato Grosso do Sul.

Assim, entendemos que os artistas que produziam localmente, antes da criação do Estado, serviram como referência para a elaboração dos processos artísticos como formadores de dinâmicas culturais para estruturação da nossa identidade artística, adotando a visualidade da natureza pantaneira com seus elementos e cores, como motivação para interpretações singulares que se irradiaram nas gerações seguintes.

Uma das referências para os movimentos artísticos em Mato Grosso do Sul foi, sem dúvida, Humberto Espíndola, artista campo-grandense cuja produção inovadora sinalizou para o circuito oficial, nos anos 70, uma região ainda desconhecida, fazendo com que a crítica nacional especializada olhasse para o centro do país.

Com obra plena de signos que trazia para discussão problemáticas socioeconômicas, Humberto Espíndola foi, por muito tempo, grande influência em pintura para os artistas que se seguiram nas décadas posteriores, tanto em Mato Grosso quanto em Mato Grosso do Sul.

Fundamentado no mito bovino, o artista estabelece relações simbólicas que se desenvolvem em diversos suportes, séries e variações sobre o tema. Para Menegazzo (1991), desde a primeira fase da pintura de Humberto Espíndola, o animal se constrói e se fragmenta, recebe máscaras, é humanizado, divinizado, mas não abandona seu espaço. A bovinocultura alcança território universal, dotando a figura do boi de valores humanos expressos através de situações que exemplificam o interesse de relato da realidade pecuarista da região.

Nesse momento histórico, a tradição da pintura também se exemplificou na obra de artistas como Wega Nery, Jorapimo, Ilton Silva, Vânia Pereira, entre outros, cujos temas eram baseados na paisagem, na representação de elementos da cultura indígena e assuntos de cunho social.

Na produção da década de 1980, a iconografia indígena continuou como grande inspiração para alguns artistas que buscaram reinterpretar questões da realidade social e da simbologia das etnias Kadiwéu, Terena e Guarani, entre outros temas.

Nesse período, a arte sul-mato-grossense buscou firmar sua identidade explorando novos conceitos para dar corpo a manifestações e linguagens plurais. Destacaram-se, em pintura, Jonir Figueiredo, Henrique Spengler, Miska, Mary Slessor, Adilson Scheifer, Carla de Cápua, Irani Brun Bucker, Lúcia Coelho, Heron Zanata; em gravura, Laila Zahran, Lú Sant’Anna, e em cerâmica, Neide Ono.

Na década de1990 houve o distanciamento dos temas regional e indígena. A paisagem e assuntos da cultura local aos poucos foram desaparecendo nas abordagens dos artistas dessa geração, demonstrando aproximação com linguagens mais contemporâneas na pesquisa de procedimentos, exploração de suportes e diferentes maneiras de representar.

Nesse cenário, registra-se a criação do Museu de Arte Contemporânea de Mato Grosso do Sul (MARCO), em 1991, em Campo Grande, como importante mecanismo de fortalecimento da atividade artística no Estado e constituindo-se como espaço referencial na formação de repertórios visuais; abrigando exposições de artistas locais, de outras regiões e o Salão de Artes Plásticas.

O período foi marcado pela busca de novas formas de expressão e pelo desligamento dos assuntos regionais, numa tentativa de afastamento da tradição de representação praticada nos períodos anteriores. A diversidade de assuntos e procedimentos contribuíram para o avanço da produção em Campo Grande, o que acabou se irradiando em outras cidades do interior. Entre os artistas dessa geração estavam Ana Karla Zahran, Beto Lima, Carlos Nunes, Edson Castro, Paulo Rigotti, Genésio Fernandes, Dagô, Lúcia Barbosa, Ovini Rosmarinus, Ana Ruas e Rafael Maldonado.

A partir de 2000, notou-se uma mudança conceitual na produção de jovens artistas oriundos do curso de Artes Visuais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Com a transferência do MARCO para a sede definitiva, em 2002, outras possibilidades foram vislumbradas devido às dimensões do espaço físico que permitiu aos artistas maior dinâmica e envolvimento para a concepção de seus trabalhos. O momento foi marcado pelo abandono das linguagens tradicionais, dando vazão à curiosidade e proposição de novos mecanismos de expressão.

Os artistas dessa geração desenvolveram pesquisas e experimentações buscando sintonia com movimento contemporâneo, elaborando informações para compor o campo de suas análises e inquietações, criando obras com diferentes narrativas para estabelecer a relação entre a linguagem e seus significados. Destacaram-se Priscilla Paula Pessoa, Patrícia Rodrigues, Douglas Colombelli, Evandro Prado, Desirée Melo.

Atualmente, a produção artística em Mato Grosso do Sul tem se desenvolvido num processo de descompasso com as dinâmicas dos circuitos já estabelecidos no país. Apesar dos esforços propostos por instituições culturais que investiram em projetos de formação artística, percebe-se uma estagnação que tem contaminado o ânimo e a qualidade do que é produzido aqui, desfavorecendo o surgimento de novos nomes com propostas consistentes.

Um dos fatores possíveis para esse descompasso talvez seja a ausência de um sistema mercadológico que viabilize a circulação/consumo do que é produzido, possibilitando maior investimento por parte dos artistas.

A prática local de comercialização de arte tem se comportado de forma tão inexpressiva que não se pode afirmar que possuímos um mercado artístico constituído. Entendendo no mercado de arte o movimento de oferta e procura, fica claro que a realidade local não é animadora. Entretanto, sabe-se que a deficiência desse processoé também perceptível em outras localidades no país.

Se levarmos em conta os aspectos culturais e econômicos que envolvem o estabelecimento do circuito mercadológico, fica claro que, nesse caso, é preciso eficiente articulação para tornar estreita a relação entre quem produz, quem vende e quem compra arte. Essa atividade estimularia o envolvimento contínuo dos artistas e promoveria outras perspectivas de produção.

A produção artística recente em Mato Grosso do Sul tem sido impactada pelo silenciamento cultural que permeia grande parte dos agentes envolvidos nesse processo. Há significativa redução de propostas que possam ser inseridas e absorvidas no contexto da produção global, ou seja, muito do que se produz no Estado dificilmente ultrapassará as divisas geográficas e culturais.

Assim, os aspectos/conceitos embutidos na obra precisam estar em consonância com os recursos utilizados pelos artistas na construção de discursos estéticos, implicando o comprometimento com questões que transcendem o lugar e o peculiar, demonstrando atitude e pensamento comprometidos com o momento presente. Esse silenciamento ocorre, muitas vezes, no desânimo proporcionado pela falta de oportunidades que estimulariam o avanço de pesquisas e o diálogo com outras produções.

Entretanto, com a incorporação recente de artistas vindos de outros Estados, se estabelecendo na capital e demais cidades do interior, vislumbra-se, no intercâmbio de diferentes formações culturais, a reconfiguração do circuito artístico local pelo confronto de ideias e proposições estéticas renovadas. Destacam-se, nesse processo, Alessandra Mastrogiovanni, Sergio Bonilha e Luciana Ohira.

Menegazzo (2013) sinalizou que a ocupação do espaço pelas artes plásticas, em Mato Grosso do Sul, revela sobretudo, a necessidade de reflexão constante do fazer artístico tendo em vista o cenário proposto pela cultura contemporânea que constitui matrizes híbridas, vincadas por diferentes referenciais.

Sabemos que o ambiente artístico contemporâneo possibilita constante reavaliação, sendo, muitas vezes, território cultural de livre troca. Nessa perspectiva, identificar artistas e circuitos de produção artística e suas distintas realidades, contribui para manter aberto o diálogo entre os agentes envolvidos e ampliar o alcance das ações que buscam fortalecer as operações de produção e reflexão do conhecimento em arte.

Nota:
(1) Texto finalizado em Dez/2016.

Referências:
FIGUEIREDO, Aline. Artes Plásticas no Centro-Oeste. Cuiabá: Edições UFMT/MACP, 1979.
HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
MENEGAZZO, Maria Adélia. Alquimia do verbo e das tintas nas poéticas de vanguarda. Campo Grande: CECITEC/UFMS, 1991.
___ Vozes das Artes Plásticas em Mato Grosso do Sul.
In: Vozes das Artes Plásticas/ Fabio Pellegrini, Daniel Reino (Orgs). Campo Grande: FCMS, 2013.