Sergipe

O GRUPO, O INDIVÍDUO, A RUA – DAS TÉCNICAS DE ATELIÊ AO CORPO NA CIDADE
Gabi Etinger e Maicyra Leão

O recorte de uma cena artística feito na seleção dos vídeos para o projeto Livre-Troca, em Sergipe, circulou entre os eixos curatoriais: artivismo, panorama histórico e poéticas contemporâneas. Lançamos uma convocatória aberta, a partir dos parâmetros do projeto guarda-chuva, e recebemos materiais dos quatro cantos da geografia sergipana, do litoral ao sertão. Em cada paisagem, uma linguagem.

Como esse tipo de prática não é comum no estado, especialmente considerando o enfoque curatorial, optamos por além da convocatória cutucar artistas e propositores um a um, estimulando uma produção direcionada ao projeto, no caso daqueles que não possuíam nada em vídeo. O suporte vídeo, fora o âmbito do audiovisual convencional (cinema, vídeo-clipe, etc.), não é uma linguagem de ampla utilização nas Artes Visuais em Sergipe. A partir dessa limitante, resolvemos mesclar o registro documental ao alargamento da própria compreensão da Arte Contemporânea, ainda pouco disseminada nas produções do estado.

Existem tentativas de criar novas formas de interlocução ou de organização neste campo, mas que na maioria dos casos esbarram num mercado desestruturado, consequentemente, num circuito truncado. O “Q” da questão não é a falta de locais para exposição. Na capital existem duas galerias que são ocupadas por meio de edital, a Galeria de Arte SESC/Centro e Galeria de Arte J. Inácio, administrada pelo governo do estado. A última começou a lançar edital em 2015, antes dela somente o SESC fazia convocatórias anualmente. A Galeria Jenner Augusto lançou dois editais com financiamento da Petrobras e sofreu interrupção prematura frente à crise na empresa patrocinadora, com o corte de repasses. A galeria encontra-se na Sociedade Semear, espaço que entre os anos 2008 e 2012 incentivou mostras de arte contemporânea e fomentou a cena com projetos financiados pela Funarte, oferecendo palestras e oficinas para os artistas e articuladores locais, com pessoas renomadas no circuito nacional. Depois desse período, tivemos uma pausa no fomento em artes visuais no estado, sendo retomado em 2016, com o projeto Arte SESC Confluências.

Fizemos o recorte de três galerias por serem as mais significativas para a produção contemporânea local. Além delas há outros espaços, particulares ou administrados pela prefeitura e governo. Os espaços existem, mas expor não significa colocar em circulação. A cadeia da arte contemporânea em Sergipe, desde a esfera pública ao colecionador privado, é bastante limitada.

Há uma prevalência de interesse por uma arte mais plástica e ilustrativa, vinculada a temáticas próximas à paisagem ou a questões folclóricas, ainda numa estética, no máximo, modernista. Muitos artistas seguem o caminho mais fácil. Outros não. Estes, alguns artistas com produção a partir dos anos 90 e jovens artistas, com produção pós 2010, seguem construindo e desconstruindo, experimentando e jogando o corpo na rua. A cidade vira suporte. Os hábitos contemporâneos, objeto de estudo. No fim das contas, a produção que acaba circulando é o objeto que combina com a cor do sofá na sala de estar.

Outro fator limitante para a produção contemporânea local é o fato de Sergipe não possuir museu de arte moderna, nem de arte contemporânea. Existem coleções em órgãos públicos e privados, mas museu de fato não há. Em 2011 foi inaugurado o Museu da Gente Sergipana, financiado pelo Banco do Estado de Sergipe (Banese), com foco na arte e cultura popular. Já foi sugerido por artistas, informalmente, a ocupação do espaço também para a produção contemporânea. Até o momento o espaço não foi disponibilizado, mas está havendo abertura com eventos voltados para o fomento em artes visuais, a exemplo do Circuito Sergipe de Curadoria, ocorrido em 2016, com palestrantes articuladores do circuito nacional.

Uma via alternativa para o circuito seria políticas públicas locais que contribuíssem na sua estruturação. Não há projetos de governo voltados para as Artes Visuais no estado. Ou seja, a arte contemporânea sergipana está à margem da margem.

Seguindo esse perfil, as iniciativas dos mais jovens percorrem justamente os muros e as ocupações. Há um movimento simpatizante de expressões periféricas como o grafite ou o lambe-lambe que se manifesta de forma organizada ou não pelo espaço público. Por meio desses mini-coletivos é possível visualizar esforços no sentido da construção de uma mobilização local, como ocorreu na retomada do Fórum de Artes Visuais de Sergipe, buscando ocupar galerias públicas ociosas, além de lutar pela tal política pública. Apesar da intenção inicial, após uma primeira e exclusiva conquista, o edital para ocupação da Galeria J. Inácio, o Fórum se desfez. Nas proximidades da universidade federal, manifestações temporárias exercitam o sentido de ocupação com projetos efêmeros, numa tentativa de interrogação do próprio circuito, como os próprios vídeos aqui expostos. Há também um ou outro contemporâneo que consegue se articular individualmente e viabilizar o comércio do próprio trabalho buscando associação com empresas locais, a exemplo de construtoras com presença destacada em Sergipe. Essas iniciativas, no entanto, são ainda tímidas e insuficientes para fazer emergir um circuito profissional no estado.

Diante do contexto, optamos por entender essa seleção apoiada na ideia de artistas-etc, proposta por Ricardo Basbaum. Mesmo na função artista estamos sempre em associação composta com outras funções seja artista-curador, artista-agenciador, artista-ativista, dentre outros. A perspectiva de um artista-artista, exclusivamente, resguarda valores e contextos de produção que convivem em simultaneidade à esfera atual, mas ao mesmo tempo não parece atender aos anseios contextuais de renovação.

Assim, considerando que as obras apresentadas aqui estão em vídeo, a própria noção de autoria se tenciona. Ora o diretor e editor do vídeo assina a responsabilidade sobre ele, ora o artista em foco, que concebe a obra a ser registrada, assume a posição de propositor. Nesse sentido, vale questionar o papel e a função central da autoria, já que há uma sobreposição autoral entre quem executa a obra – objeto e ação – e quem organiza a obra-evento. Tentando equalizar essa questão nos vídeos selecionados, tecemos uma sequência de exibição em que fique claro o enfoque autoral. Nos primeiros vídeos, o documentarista está em destaque, nos demais, a linha autoral está pautada no artista/obra documentada.

Na seleção realizada, Sergipe apresenta formas variadas de produção, indo desde o artesanato, utilizando matéria-prima natural, até os experimentos poéticos através do corpo, da memória e do espaço. Para situar o espectador, apresentaremos abaixo a seqüência dos vídeos selecionados.

No eixo artivismo temos o projeto “Ocupação – 2016”, dos alunos do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Sergipe, numa tentativa iniciante de atuação social através da arte contemporânea e etnografia. Em contraponto,  “O muro é o meio”, de Eudaldo Monção Jr., apresenta o pixo nos muros da mesma universidade como meio de comunicação e resistência sociocultural. No vídeo é apresentada a relação dos pixadores e comunidade universitária com a linguagem através de fatos recentes, a exemplo da ocupação do prédio da reitoria em 2008 e 2011, reivindicando direitos estudantis.

Partindo dos movimentos sociais na capital, chegamos ao Coletivo Japaratuba em Rede, formado através do Projeto Japaratuba em Rede: juventude, cultura e cadeias produtivas,  gerido pelo Instituto Banese e iniciado em setembro de 2014 com o objetivo de integrar jovens agentes culturais de diferentes comunidades da cidade natal de Artur Bispo do Rosário através da participação ativa na produção cultural local, seguindo três frentes de atuação: criatividade, comunicação e gestão cultural.  Os vídeos “Na trilha da palha” e “Entalhe em madeira – novas descobertas”, são mostra de parte do artesanato tradicional utilizando matérias-primas naturais da região. Longe da capital, a finalidade da arte é comercial. A venda das peças produzidas auxilia na economia doméstica dos participantes, fator característico do artesanato produzido em cidades do interior. Outra dinâmica mercadológica.

Da vida interiorana no Vale do Contiguiba, partimos para a intimidade das poéticas individuais de um dos artistas da geração Oxente nos anos 80, até os contemporâneos dos dias de hoje, num curto panorama das artes visuais em Aracaju. Joubert Moraes (“Aracajoubert”), artista-artista, produz suas pinturas e esculturas inspirado pela praia de Atalaia e formas femininas. Por sua vez, tomado pelo caos das grandes cidades, Fábio Sampaio (“Desnorteado”) utiliza materiais gráficos diversos em suas instalações.  A vertente experimental de Gabi Etinger é vista em “A cidade caiu de amores pelo automóvel”, mesclando xilogravura ao texto do jornalista Rian Santos.

Das práticas de ateliê chegamos à rua.  A performance invade o espaço urbano em “Experimentos gramíneos”, de Maicyra Leão, explorando o corpo como centro promotor de estranhamento em meio à atividade cotidiana urbana. A criatura-grama lembra a necessidade de oxigenação no sentido literal e metafórico, sobre os concretos cinzentos da cidade.

Das ruas, voltamos para a morada do corpo. “Domum”, performance de Julia Delmondes, utiliza a casa como palco na busca de uma identidade íntima, apropriando-se do espaço em meio a estética do abandono. A dançarina vivencia os segredos dos cômodos, e os seus próprios, transformando-os em passos dançados. “Evocando as lembranças da casa, adicionamos valores de sonhos” (Gaston Bacharelard).

O corpo no solo árido do sertão sergipano. Essa é uma das primeiras cenas de nosso último vídeo, “Primeiro grito”, do designer Guto Carvalho Neto, rodado no município de Porto da Folha. Produzido para um desfile de moda, o material converge diferentes linguagens, num produto publicitário por meio da arte conceitual.

No interior sergipano, lugar que alimenta imaginários contemporâneos e ao mesmo tempo rege o anseio folclórico do circuito tradicional, e modernista, encerramos nossa seleção.