Bahia

CIRCUITO DE ARTE NA BAHIA    (BREVE DEPOIMENTO)
Almandrade (1)

A história da arte no Brasil relata apenas o que acontece nos grandes centros. Aliás, a arte sempre dependeu dos centros culturais de informação e divulgação, com algumas exceções. Um país como o Brasil com uma extensão territorial e uma diversidade cultural contraditória, não se tem informação mais depurada e uma leitura crítica do que aconteceu nas outras regiões. Era sempre um olhar à distância, que via apenas o repertório visual regional e o exótico.

Em 1876 foi fundada em Salvador a Academia de Belas Artes de onde surgiram os primeiros pintores da Bahia. Em 1944 na Biblioteca Pública do Estado aconteceu a primeira exposição de artistas “modernos” baianos, em 1950 a Galeria Oxumaré e em 1960 o Museu de Arte Moderna. Um circuito ainda precário e provinciano resistente às transformações das linguagens artísticas das décadas seguintes. A arte contemporânea que despontava nos anos de 1970 passou quase despercebida, como uma brincadeira de algum engraçadinho, no cenário cultural da cidade do Salvador.

A modernização do País idealizada nos anos de 1920 vem à tona na segunda metade da década de 50. Com a derrota da seleção brasileira na copa do mundo no Brasil e o suicídio do presidente Getúlio Vargas, o brasileiro perde a autoestima e mergulha na tristeza. A eleição do presidente Juscelino Kubitschek, em 1956, e seu projeto desenvolvimentista inaugura no País uma nova era, a cultura brasileira assume uma posição de vanguarda. No mesmo ano da posse de JK acontece o lançamento da arte e da poesia concreta. Flávio de Carvalho escandaliza com a invenção da roupa para o homem dos trópicos, desfila no centro comercial em São Paulo de mine saia e meias de bailarina.

O brasileiro recupera a alegria e a confiança com a vitória da seleção brasileira na Europa em 1958, com um futebol arte que subverteu as regas do futebol europeu e encantou o mundo principalmente nas pernas tortas de um bailarino da bola muito mais preocupado com o riso do que com o gol, Mané Garrincha, sem esquecer o jovem Pelé. O sonho de Brasília vira realidade. A arquitetura moderna, a Bossa Nova e o Cinema Novo confirmam a modernidade do Brasil.

Na Bahia o governador Juraci Magalhães e o reitor Edgar Santos são os agentes fundamentais desse processo de modernização e da produção cultural no Estado, quando a Universidade tinha uma participação mais decisiva no cotidiano da cidade. É nesse ambiente que Lina Bo Bardi desembarca em Salvador trazendo uma bagagem com as referências da arquitetura moderna europeia mas desconfiada com o funcionalismo e da linguagem formal e objetiva desprovida de significados capazes de promover a identidade cultural.

A presença de Lina foi decisiva não só para a arquitetura mas para a cultura baiana que ensaiava a modernidade. E o impacto das matrizes da cultura popular do nordeste foi marcante na transformação da obra de Lina. Com certa distância, faz me lembrar a experiência de Hélio Oiticica, quando sobe o morro da Mangueira com a arte construtiva: Mondrian, Malevith mais fenomenologia de Merleau Ponty na cabeça e lá encontra o samba redescobre o corpo e volta para o asfalto ou para a zona sul carioca com um problema para a arte: o Parangolé e a participação do espectador, um marco na arte brasileira, que faz dele o mais brasileiro e o mais universal dos artistas.

A modernização industrial baiana entre as décadas de 60 e 70, que contou com a implantação do Centro Industrial de Aratu e do Complexo Petroquímico de Camaçari, não teve correspondente no meio cultural local, por se tratar, possivelmente, de expansão do polo industrial São Paulo/Rio. A indústria do turismo, hegemônica, a partir da segunda metade dos anos 70, movida pela especulação do patrimônio natural, artístico e arquitetônico e as festas populares, deu impulso ao desenvolvimento do ramo hoteleiro, mas não estabeleceu o intercâmbio de experiências nem propiciou um regime favorável ao surgimento de uma cultura urbana que estimulasse as diferenças culturais.

A partir da década de 70, com a “Arte Conceitual” a obra passa a ser de ordem mental e reflexiva, constituindo uma das inúmeras formas de expressão artísticas possíveis para o desenvolvimento do trabalho de um artista plástico contemporâneo. O público deixou de ser um observador passivo, ele foi obrigado a refletir sobre a obra de arte, o discutível entendimento da obra de arte não era mais direto. Mas a Bahia, com sua produção defasada, ainda era provinciana e hostil a qualquer manifestação que não correspondesse às linguagens bem comportadas das “belas artes”.

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No Manifesto: Arte-Bahia-Estagnação publicado no JORNAL A TARDE, Salvador, 12 de fevereiro de 1979, procuramos registrar o nosso atraso:


“Para haver uma arte de vanguarda (crítica) é preciso haver instituições, crítica artística, salões, escola de artes aparelhadas, mercado mínimo de operacionalidade abertas que permitam em seu interior a produção, circulação e consumo de novas informações que ampliem o repertório de signos artísticos. Na Bahia podemos constatar a ausência desses fatores, e também, como fator negativo ao desenvolvimento de novos repertórios, podemos citar a preservação de um falso patrimônio que a elite econômica se utiliza para demonstrar status e ao mesmo tempo deter a cultura, controlando a produção ideológica.

“A divulgação da arte na Bahia só é possível quando os artistas aceitam as regras do mercado e dos grupos que controlam as instituições. Um fato que vem comprovar esta situação é o Salão de Verão que inicialmente tinha como estratégia uma exposição aberta a todo e qualquer trabalho, mas de última hora os organizadores mudaram de estratégia impondo uma seleção. Somos contra, não ao fato de haver seleção, pois o situar-se só é possível quando se toma partido, o que somos contra é o tipo de seleção, não objetiva, determinada por critérios de política pessoal, burocrática etc. Mesmo o salão alternativo que surgiu em decorrência desses fatos reproduz os mesmos defeitos do salão oficial em relação à produção artística.

“A situação na arte na Bahia estagnou nas propostas da década de 60, não havendo nenhum vínculo com a produção e as discussões dos anos 70 Arte conceitual, arte ecológica, Arte Corpo, etc. esta desvinculação da arte baiana em relação às novas estratégias, contra o circuito artístico, levam os artistas a uma prática cultural alienada.

“Abrir um espaço para a arte não é como a Fundação Cultural propôs, com o Salão de Verão, mas sim abrir um espaço para discussão aberta que venha criar novos hábitos de produção e de leitura.

“O que se pretende neste texto é contribuir para a discussão da prática alienante que ainda reina nas artes na Bahia, sincronizar o fazer artístico na Bahia com os principais centros produtores e pensar formas de minar o mercado baiano. Não podemos deixar de citar também a falta de um posicionamento ideológico dos artistas. Enfim é necessário envenenar toda uma tradição cultural medíocre e suas táticas.

“Concluindo, para revitalizar a estagnada produção artística baiana, é fundamental frisar que o fazer artístico é essencialmente um fazer sobre a linguagem no interior da estrutura social e o questionamento deve ser neste nível. Politizar a arte e a semântica e as formas de circulação.”

(Almandrade e Haroldo Cajazeiras Alves)

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No território das artes plásticas brasileiras, a Bahia passou por um processo de amadurecimento meio lento para absorver as linguagens modernas e promover uma renovação capaz de competir com a arte produzida nos grandes centros. O que marcava a produção baiana era uma tendência ligada a regionalização e uma recusa à universalidade, a busca de um “moderno regional, local”. A arte girava em torno dos limites das primeiras manifestações modernistas, dentro de um esquema pictórico que reivindicava um retorno às chamadas “raízes culturais”, alheia às transformações que estavam acontecendo com passagem da vanguarda para a contemporaneidade.  A adaptação às novidades modernas se deu de forma aleatória, dentro de um pacto com a temática local, nordestina. A contemporaneidade custou a chegar, e acabou sendo diluída sem se assimilar direito suas questões, como uma fácil saída para o impasse arte / novidade. Uma arte contemporânea sem história, instantânea e descartável. A Arte Conceitual exigia muito para se produzir alguma coisa, não foi digerida.

Na segunda metade da década de 1960, houve na Bahia uma força de vontade de acompanhar as diversidades da vanguarda brasileira. Não havia um procedimento de vanguarda, nem um pensamento, era mais um inconformismo com a situação em que se encontrava a Bahia diante das inquietações dos anos 1960: Contracultura, Tropicália, experimentalismo e as rupturas dos suportes tradicionais. A vontade de intercâmbio com a vanguarda resultou nas Bienais da Bahia, que contou com a participação das manifestações mais importantes da época: Concretismo, Neoconcretismo, Tropicália etc., fazendo de Salvador o centro das artes plásticas brasileiras. Chegou a provocar o cenário cultural local, contrário a uma atualização do meio de arte baiano. Como o regime político do final dos anos 60 era pouco favorável a liberdade cultural, surgiu o AI-5 e a 2ªBienal foi fechada. Foi o fim de uma iniciativa que deixou a arte brasileira de luto.

O grupo ETSEDRON liderado pelo artista plástico Edson da Luz no início dos anos 70 foi um agregador, conseguiu reunir diferentes linguagens e artistas em torno de um tema: uma arte brasileira de vanguarda que via no nordeste brasileiro a certeza da brasilidade.

Sem um trânsito de informações, sem um centro de apoio e sem uma política cultural que viabilizasse possíveis linguagens experimentais, entramos na década de 1970 sem acompanhar as mudanças significativas que estavam acontecendo na produção artística e sua leitura. Entre 1972 e 74, o grupo de estudos de linguagem da Bahia (Haroldo Cajazeira, Júlio César Lobo, Orlando Pinho e Almandrade), distante dos problemas do circuito local, iniciou um estudo pioneiro na Bahia sobre semiótica, teoria da informação, filosofia da arte, Poesia Concreta, Concretismo Neoconcretismo e Arte Conceitual que levou a publicação da revista “Semiótica”, em julho de 1974, uma iniciativa isolada, sem maiores atritos com o meio local.

Os artistas surgidos no início da década de 70, geração pós-AI-5, tinham poucas oportunidades de circular seu trabalho e acompanhar o que estava acontecendo nos grandes centros: as discussões em torno da arte conceitual e o sistema da arte. Contava apenas com os salões universitários, que não traziam nenhuma perspectiva de troca de informações, eram salões domésticos, mostravam a produção local, defasada, sem abrir intercâmbio com outros Estados. O Instituto Goethe foi o principal centro cultural da cidade, na época, principalmente para as manifestações artísticas experimentais, até o início da década de 80. As iniciativas eram individuais e improvisadas, como a exposição organizada por Glei Melo: “Paralelo 78” com a participação dos artistas: Humberto Velame, Mário Cravo Neto, Almandrade, Juarez Paraíso e o próprio Glei Melo, no foyer do Teatro Castro Alves, em 1978. Entre o moderno e o contemporâneo, com pinturas fotografias, objetos e instalações.

O principal agente do circuito, do ponto de vista de investimentos econômicos, ainda era o mercado estatal, mas direcionado para a geração surgida antes da década de 60, alguns com participação no mercado nacional. Sem uma política de ação cultural necessária à preservação e renovação do patrimônio cultural, a cidade do Salvador ficou aquém de uma cultura urbana, alheia às transformações da arte.

Somente no final dos anos 1970, o Museu de Arte Moderna reabre as portas para reassumir o seu papel no circuito da arte, com uma grande exposição, sem nenhuma seleção, a Exposição Cadastro, um equívoco, mas um equívoco necessário, era uma vitrine da arte baiana. Desde as Bienais, não havia acontecido uma mostra desse porte, do ponto de vista de quantidade, não de qualidade, incomparável com as Bienais. Participaram das Bienais as principais tendências da arte de vanguarda brasileira e estava em outro contexto que diz respeito aos agitados anos de 1960. Essa reabertura do circuito de arte estava inserido dentro de outro momento político que passava o país: abertura, anistia, liberdades democráticas. Iniciava uma nova perspectiva cultural: O AI 5 fechou a Bienal, a chamada abertura política reabre o museu e devolve a liberdade de expressão. Era o início de uma nova etapa, a redemocratização do País.

Mas a Exposição Cadastro, nas suas melhores intenções, mostrou que a Bahia estava distante da contemporaneidade, salvo alguns exemplos isolados, não tinha nem entendido direito a modernidade, às voltas com um “moderno regional”, a Arte Conceitual que não era mais o centro das atenções, era um escândalo. A exposição “O Sacrifício do Sentido” inaugurou a primeira  individual de arte contemporânea de um artista baiano no MAM – Ba. A mostra compreendia trabalhos realizados entre 1975 e 1980, “marcados principalmente pela arte conceitual que dominou a década de 70, a poesia visual e uma herança construtiva. Desenhos, objetos e instalação, sem cor, preto e branco”. Silêncio e raciocínio. Objetos tensos.

Nos anos 70 as dificuldades eram maiores, fui recusado em quase todos os salões por fazer uma opção pelo “contemporâneo”. A exposição do MAM, “O Sacrifício do Sentido”, não foi bem-vista pela crítica provinciano e pelo público. Paguei caro. Hoje a coisa está inversa, a arte contemporânea está em todos os lugares, se exige muito pouco do artista.

Depois dos anos 1970, no contexto nacional e internacional, ocorreu o retorno da pintura, o reencontro do artista com a emoção e o prazer de pintar. Um prazer e uma emoção solicitados pelo mercado em reação a um suposto hermetismo das linguagens conceituais que marcaram a década de 1970. A arte contemporânea passou a ser um fazer subjetivo, como se arte fosse um acessório psicológico ou sociológico. Troca-se de suporte, nos anos 1990, com o predomínio da tridimensionalidade: escultura, objeto, instalação, performance etc., mas a arte não retomou a razão. Para uma condição pós-moderna, o suporte não é o essencial, mas o significado. Somente na segunda metade da década de 1990, depois de instaurada a supremacia do contemporâneo pelo mercado, o circuito de arte baiano absorveu as novas linguagens e o conceitual tardio que passaram a conviver, sem conflito, com as tradições locais.

A galeria ACBEU, criada em 1975, veio se constituir num importante espaço de divulgação da produção de arte, não só para artistas emergentes, como também para artistas reconhecidos no mercado de arte. Os Salões Baianos de 1986 e 1987 foram iniciativas para inserir a Bahia no cenário nacional e estabelecer um intercâmbio entre artistas, também sem continuidade. Reiniciados nos anos 1990, com um novo formato, acompanhado de outros projetos culturais e iniciativas de interesse nacional, como a ampliação das oficinas do MAM idealizadas pela arquiteta Lina Bardi, teve uma atuação decisiva na formação e informação de artistas e público. Nos últimos anos o mercado começou a se organizar e se destacar como um agente estimulador do circuito de arte. No final de 2000, encerra-se o Salão MAM, depois de quinze edições e as oficinas são desativadas. Em 2014 retoma a Bienal da Bahia, quarenta anos depois da 2ª Bienal, novamente interrompida, sem perspectiva da 4ª Bienal.

 

Nota:
(1) Almandrade, artista plástico, poeta e arquiteto.