Resenha crítica

LIVRE-TROCA: POROSIDADES
Mario Domingues

Livre-Troca é um projeto em que 13 artistas, um de cada estado do Centro-Oeste e Nordeste e um representante dos Territórios Indígenas compartilham suas reflexões e sua produção num intercâmbio sobre os circuitos artísticos em que atuam.

A proposta foi criar textos e selecionar vídeos sobre estes circuitos artísticos, principalmente em pontos e ações autônomas nas artes visuais. Os textos e os registros fotográficos foram veiculados num website, e os vídeos exibidos na mostra foram compilados em mídia digital e reproduzidos em tiragem restrita, compartilhando o acervo entre os participantes, instituições culturais, faculdades de arte e museus. O Livre-Troca proporcionou também um encontro em Maceió-AL, em fins de 2016, com mesas de debates e uma mostra dos vídeos selecionados.

A troca entre produções especializadas, provindas de diferentes contextos produtivos e a troca de excedentes produtivos são práticas comuns em comunidades tradicionais brasileiras, sejam entre grupos étnicos, de identificação regional e/ou popular. São trocas culturais, entre coletivos ou indivíduos, como consta na apresentação de Newton Goto.

Nas permutações artísticas propostas, há um sabor de moitará, que são as trocas especializadas entre nações indígenas (1), em que objetos ou outros elementos ou usos são trocados a partir da relação de interesse entre as partes.

Outra analogia possível seria aquilo que Fernando Pessoa chamou de cosmopolitismo. Em busca da essência do povo português, Pessoa detectou a capacidade de ser muitos outros, e isto o poeta atribui aos povos romano e árabe, de longa permanência naquele território. Aos romanos porque atinaram seus imperadores para o fato de que os povos dominados trariam menos problemas ao império se pudessem manter sua língua, sua religião e costumes. Mais tarde, o domínio árabe na península permitiu uma troca cultural entre judeus, cristãos e muçulmanos.

Entre o moitará e o cosmopolitismo, podemos falar em porosidade cultural.Vale refletir sobre as palavras do curador a propósito do impacto simbólico da proposta, pois o compartilhamento gratuito de uma coleção de videoarte vai contra a lógica dos circuitos habituais nas artes visuais. Esta lógica é baseada no exclusivismo, na mercantilização da arte e no sentimento de propriedade.

Assim, o projeto Livre-Troca encontra suas metáforas: moitará, Al-Andaluz e trata-se de uma economia criativa, transcendendo o âmbito do simbólico. Como neste projeto o diálogo está tanto no ponto de partida quanto no de chegada, é um gesto de resistência aos condicionamentos coagulantes do métier e do mercado.

Em alguns dos textos propostos temos reflexões ancoradas em apanhados rigorosos na detecção dos pontos nevrálgicos de seus circuitos. No caso de Alagoas,Viviani Acioli e Rosivaldo Reis mesclaram história e presente, entre o mais antigo liceu às colagens fotográficas do poeta Jorge de Lima, a fundação do Instituto de Belas Artes em Maceió à crítica à falta de leis de incentivo.

Similarmente, o texto de Almandrade, da Bahia, é contundente ao sintetizar a situação dos estados à margem do eixo: a história da arte brasileira é a história da arte paulistana e fluminense. É surpreendente sua constatação de que o conjunto da arte brasileira não é apenas diverso, é também contraditório.

Outros textos do acervo apresentam certa poética na abordagem do real, calcada em metáforas e imagens, na esteira da tradição de historiadores, sociólogos e antropólogos que abordaram os temas do Brasil profundo, como no caso do Ceará e do Distrito Federal.

Mariana Smith buscou a etimologia do nome Ceará, derivado de Saara, e com isso invoca o deserto, um signo de solidão. Ela toca na problemática dos artistas que de lá migraram, como aqueles que saíram do estado para melhor divulgar e viabilizar suas obras. E recorre a outra metáfora, a do oásis, representando tanto a ilusão de fugir da aridez quanto de recorrer à arte folclórica de apelo popular, sem se furtar a apontar a importância da xilogravura naquele circuito.

Bia Medeiros, do DF, partindo do signo do exílio involuntário, tem como tema a defasagem entre a importância de Brasília e a ausência, ainda na década de 1990, de um circuito aparelhado. Sua crítica extrapola o âmbito das artes visuais, expondo também a aridez nas cenas de outras manifestações artísticas.

De Goiás, Divino Sobral aborda o pouco tempo de vida da cidade Goiânia como fator de defasagem, mas expõe também um atento levantamento dos pontos do circuito da capital. Cita o pioneirismo de Maria Guilhermina, fundadora da Galeria Azul e responsável nos anos 1960 por colunas de arte na imprensa goiana, e os questionamentos que sofreu. Por fim, abrange também as cenas em Anápolis e Inhumas.

De modo similar, a pesquisadora de Pernambuco Joana D´arc de Sousa focou a cena contemporânea em Recife e Olinda. Privilegiando um ponto específico do circuito, descreveu as experiências em torno da Casa Maumau. Também Sanzia Pinheiro, do RN centrou seu depoimento em exemplos de espaços autônomos em Natal: o 10 dimensões e o Bode Arte. Por fim, Guga Carvalho, apresenta um depoimento intimista, sobre experiências e ações como as do Desbunde Piauiense e do coletivo Abacateiro como pontos nevrálgicos dos circuitos do Piauí.

Outra linha de interesses foi a volubilidade das fronteiras internas do país, mesmo em territórios não (mais) indígenas, em que Rafael Maldonado, enfocando as artes no MS como sensíveis à sua geografia entre as fronteiras com o Paraguai e a Bolívia. Note-se a aguçada percepção de que a busca identitária após a criação do estadose deu, entre outros, pela valorização dos artistas sul-mato-grossenses e sua produção no período anterior à criação do estado, e claro, pela influência do universo do pantanal.

Certos depoimentos concentraram-se quase exclusivamente na cena contemporânea de sua capital, como no caso de Tiago Martins de Melo, do Maranhão, criticando também as relações entre estado e estímulo à produção cultural, em que o coronelismo transformou o apoio às tradições folclóricas em moeda política na compra de votos. Realidade que se transposta para outros estados aqui envolvidos gerará discussões pertinentes.

Consoante à presença fundamental de representante dos Territórios Indígenas, Maria Thereza Azevedo, de Mato Grosso, propõe que a arte naquele estado começou com os Bororos há sete mil anos, dizimados por bandeirantes em busca de ouro. Com discurso politizado, Azevedo ainda aponta o perigo dos interesses do agronegócio na região.

Em Sergipe e na Paraíba tivemos a atenção voltada à videoarte, seja no mapeamento, seja na instigação à produção. Gabi Etinger e Maicyra Leão, de Sergipe, apresentaram aspectos como o artivismo, um histórico do circuito e suas poéticas contemporâneas. Radicalizando o sentido de coletividade, as artistas alargaram a participação no projeto convidando outros artistas, estimulando a produção em videoarte e suscitando o debate sobre arte contemporânea. O mesmo se deu, neste ponto, com Dyógenes Chaves, da Paraíba, abordando a problemática específica da história da produção de videoarte neste estado.

Representante dos Territórios Indígenas, Naine Terena demonstra a visão dos povos tradicionais quanto ao poder da imagem: trata-se de um instrumento de luta, uma realidade cada vez mais latente entre os povos indígenas. Na imagem, Terena vê um instrumento de descolonização dos direitos à comunicação e informação. Com discurso fortemente político, com sabor por vezes etnográfico, como que demarcando o território da etnomídia, campo irmão da videoarte.

Um aspecto orgânico dos textos produzidos pelo Livre-Troca, o que permite dizer que tem seus vasos comunicantes, que compartilham não só de sangue, mas de veias e músculos, são seus pontos e dinâmicas comuns. Alguns artistas partem dos signos da aridez, do exílio, da solidão, do deserto, para a detecção bastante precisa dos componentes dos circuitos de cada estado. Os textos são entre críticos e propositivos e isto os torna comedidamente redentores porque atestam que compartilhar dados entre margens faz entender melhor tanto a margem quanto o centro. E que não se tome como redundância que artistas à margem critiquem os mecanismos do eixo: são artistas críticos do começo ao fim, de ponta a ponta.

Enfim, os depoimentos apontam a importância da formação de redes regionais, como ligação entre as margens, mesmo que ainda em progresso, como forma de fechar um círculo em torno ao centro e abraçar a solidão fria e comercial dos circuitos condicionados de que sofre o eixo.

Cabo Frio, 03/04/2017

Nota:
(1) Referência / texto Goto.